As redes sociais venceram, ou quase
"like gen" + DQAD + você sabe o que são filmes machinima?
I.
Interessante. Na última (primeira) edição dessa newsletter te falei sobre a pressão contemporânea da produtividade… você precisa fazer mais, você precisa se dedicar mais e assim por diante. E então, vim por esses dias tentar organizar minha própria rotina produtiva, não de trabalho, mas a artística. Foi nesse momento que eu notei que não existe mais rotina artística na minha vida; o criativo se tornou trabalho. Até mesmo assistir filmes e jogar, que são duas das coisas que mais amo fazer, caíram nas graças da monetização—não me refiro apenas ao dinheiro, mas views, likes, fucking engajamento.
Me vejo desenhando pra postar no Instagram e ganhar views, quem sabe vender uma tatuagem. Estou criando conteúdo sobre cinema no TikTok para tentar engajar os usuários no meu Letterboxd e quem sabe, tornar minhas críticas um ganha pão. Tenho criado conteúdo para o YouTube para tentar monetizar e me enfio em projetos de design focado em “conteúdo” que sugam minha criatividade em trocar de alguns trocados/hora pra pagar contas—e fica tudo uma bosta, criatividade processada, rasa.
Não estou reclamando, a gente precisa fazer o corre, mas queria compartilhar esse feeling de que tudo o que eu faço hoje, parece ser feito para atingir “visibilidade” e consequentemente, monetizar. Talvez você sinta o mesmo ou já tenha sentido, com sorte, vai achar outro caminho antes de sentir isso. Mas olhando um pouco de longe, definitivamente é o que as redes sociais tem feito comigo.
Nós equiparamos nossas vidas com a vida de influenciadores e pessoas que admiramos e tiveram sucesso… mas não consideramos que há 8 bilhões de pessoas no mundo e essa galera é apenas uma fração de 1% da população (0,0000…). Se você está nos 20 ou começando os 30 (como eu) e se sente uma merda (de vez em quando ou na maior parte do tempo), não é por sermos um fracasso, mas por sermos alienados pela mídia e oprimidos por padrões sociais extremamente distópicos e sem sentido. Somos desumanizados e transformados em máquinas. Há quem tema o futuro onde a I.A. vai dominar o mundo e acabar com a raça humana… lamento informar, mas a I.A. não vai precisar ter esse trabalho, estamos lentamente permitindo que consumamos à nós mesmos, assim, de dentro para fora.
Eu queria muito conversar mais com você sobre essa perspectiva que gosto tanto e autores como Byung-Chul Han, Baudrillard e tantos outros exploram com tanta sagacidade, mas não quero trazer apenas notícias ruins. Eu tenho pensado muito em como me desintoxicar dessa pressão, ter momentos de criação genuína, momentos de prazeres não quantificados. E parece que há um denominador comum em todas essas saídas, a abstração. Eu sei que é difícil não estar online, mas ainda podemos escolher como estar. Hoje, eu tenho meu jardim digital, onde compartilho meus textos, ideias, projetos e crio esse espaço, que quero deixar cada vez mais coletivo, com você e a rede. Estou tentando me desvincular de algumas redes sociais, e parar de pensar em engajamento ou conteúdo, mas em “compartilhar” coisas que eu gosto com quem está por aí e se interessa, principalmente as pessoas que se preocupam comigo e querem genuinamente estar em contato de qualquer fragmento do Uoshi, não apenas a arte que criou, o conteúdo que fez… feel me?
Enfim. Termino essa seção de forma inconclusiva, e reflexiva. Espero que faça sentido para você, e se não faça, tudo bem também, torço para que você esteja bem e não se esqueça de desacelerar, respirar fundo e fazer coisas que gosta por seus momentos de qualidade.
II.
Durante essa semana eu passei dois dias codando um projeto que estava há algum tempo na minha cabeça, uma espécie de criação digital e crítica à imagem perfeito. Hoje, tudo é alta resolução, um reflexo da busca incessante pela otimização, e o imperfeito é pobre, lixo, descartável ou nostalgia. O lance é, eu amo fotografar, talvez você saiba que eu amo filmar também, e tenho me incomodado muito com o fato de como fico decepcionado comigo quando a imagem não fica perfeita. E comecei a notar que essa decepção nem é interna, mas um reflexo do julgamento de quem vai ver essa imagem e apontar o dedo para a minha “incapacidade” de fazer uma imagem perfeita.
Bom, foda-se. O digital banalizou a imagem e criminalizou a falha, e é sobre isso e assim que o projeto DQAD surge, uma mistura de fotografia digital com javascript. Por algum motivo, pensando no projeto eu sequer cogitei usar um software de edição, já tinha comigo desde o início que eu usaria código para destruir as imagens… ou melhor, reconstruir. Então, codei um script que permitisse mixar diversas imagens e aplicar aberrações visuais para criar Frankensteins. Acontece que eu amei como ficou e decidi colocar em um site as 12 imagens que fazer parte da coleção que criei, e também fiz uma interface para que qualquer visitante possa experimentar o mesmo processo, fazer o upload de suas imagens e mixar.
Esse tipo de interferência com códigos não é novidades, na verdade até existem incontáveis bibliotecas de scripts que servem para causar glitchs e distorções em imagens, basicamente o que eu fiz foi utilizar algumas combinadas e específicas. Foi uma experiência maneira e talvez você também se divirta. O projeto está assinado com um pseudônimo, e fica o convite pra você visitar a galeria digital que criei e também brincar com as suas imagens.
Nota: quem tiver curiosidade pode visualizar o código completo do projeto no repositório do Github.
III.
No último sábado (28/06) eu colei na exibição e bate-papo de “Contém Ingredientes de Verdade”, da artista Estelle Flores no MUMA em Curitiba. A Estelle é uma artista multidisciplinar e criou essa exibição com fotografias e filmes machinima, realizados dentro do jogo The Sims. Eu não vou entrar em detalhes sobre a exibição, ela foi bem maneira e quem tiver oportunidade de ver esse trampo, aproveita. O que eu quero compartilhar com você são duas coisas que me chamaram a atenção nesse evento: O conteúdo e a conversa.
Se você não sabe o que é machinima, é um termo que se refere a obras, especificamente audiovisuais, que são realizadas dentro de jogos ou com engines de criação de jogos. Machinima é uma mistura das palavras machine + cinema, cunhada por Hugh e Anthony Bailey no começo dos anos 20001. Esses dois carinhas já vinham há algum tempo fazendo parte de uma galera que criava pequenos filmes usando o jogo Quake, e faziam parte da Quake Done Quick Movies. Não atoa, esses dois criaram a famosa e falida empresa/site Machinima (2000), que era um espaço onde quem estava criando jogos no Quake poderia compartilhar e encontrar conteúdos.
Okay. Contextualizado. Durante o bate-papo rolou algumas coisas estranhas, tipo: a galera não sabia explicar o que era exatamente machinima ou o que isso representa para o audiovisual global underground e mainstream, ou mesmo nas artes experimentais. Enfim, conhecer o processo criativo da Estelle foi incrível, as obras são iradas demais e ninguém é obrigado a saber tudo. Mas a conversa tomou outros rumos mais filosóficos e poéticos e toda a potência de explorar o fato de que “um jogo foi novamente validado como arte dentro de um museu”, ficou apagado.
Filmes em jogos são feitos desde a década de 1990. Diary of a Camper (1996) foi um dos primeiros curtas do gênero, seguido por muitas outros ao longo dos anos. Dos principais jogos explorados, inicialmente, estão a franquia Quake, Halo e Half-Life. Ao longo dos anos 2000, rolou também produções de cineastas como Peggy Ahwesh com obras como She Puppet (2001), realizado com footages do jogo Tomb Raider. Jake Hughes e a obra premiada no Annual Machinima Awards de 2002, Anachronox: The Movie. Phil Solomon com suas obras em Grand Theft Auto: San Andreas, como Crossroad (2005) e Rehearsals for Retirement (2007). John Hillcoat e o curta The Man From Blackwater (2010) feito inteiramente no mundo de Red Dead Redemption. O longa The Trashmaster (2010), feito em Grand Theft Auto IV, de Mathieu Weschler, e muitos outros.
Mais recentemente, diversos outros artistas e filmmakers começaram a produzir dentro do gênero, que além de ser um espaço frutífero para criatividade e experimentações, vem se mostrando uma ferramenta de democratização da produção audiovisual, permitindo que qualquer pessoa com acesso a um computador ou celular que suporte, pelo menos, a emulação de consoles antigos, consigam criar suas próprias narrativas.
Atualmente a plataforma Milan Machinima Festival tem sido uma potencia na divulgação de obras machinima, além disso, a gente nota como o gênero vem ganhando espaço ao observar trabalhos como Ida B. Wells: A Red Record (2020) de Harrison W. Reishman e um dos projetos mais recentes a atingir o mainstream a partir da plataforma MUBI, o longa Grand Theft Hamlet (2024), de Pinny Grylls e Sam Crane.
Existem incontáveis produções machinima que são interessantes e criativas, e a sua maioria está espalhada no YouTube e Vimeo. Se você tem curiosidade, eu criei uma playlist no YouTube e uma lista no Letterboxd pra tentar compilar um pouco dessas obras e para finalizar mais cedo, e depois de tanta conversa, nessa newsletter, queria te convidar pra conferir o meu curta-metragem KT4RS3 (2024), vencedor no Audience Choice do Lift-Off Sessions em janeiro desse ano,um machinima criado em The Witcher 3 que explora um pouco do antagonismo da violência e da contemplação no jogo.
Obrigado por estar até, até a próxima.
xoxo
MARINO, P. 3D Game-based Filmmaking - the Art of Machinima. Scottsdale, Ariz: Paraglyph Press, 2004.